Young Buddhist monk reading - Thailand, Sakonnakhon - photo by Jakkree Thampitakkull
A liberdade como disciplina
A vida social dos Seres Humanos é carregada de inerências, ou seja, de elementos que estão associados diretamente à condição Humana. E uma das principais características dos Humanos é a capacidade de realizar escolhas, o que é teorizado em alguns campos das Ciências Humanas como liberdade. E o conceito de liberdade perpassa toda a história da Humanidade, em controvérsias problemáticas, contrapartidas positivas e momentos de ausência dessa liberdade. Porém, o que se entende por liberdade, no senso comum, no popular, não é a profundidade cabível nessa palavra tão falada, nesse conceito tão discutido e nessa prática tão desejada por todos.
A princípio, a Ciência Política divide a liberdade em duas dinâmicas: a liberdade positiva e a negativa. Em uma esteira mais política, o debate sobre a liberdade encara mais a face do primeiro conceito. Liberdade positiva: a liberdade que é garantida por uma instituição maior, por meio de um quadro normativo, de regras de convivência, leis institucionais e parâmetros morais. A profundidade do ensaio filosófico de hoje está sob a atenção do segundo conceito: liberdade negativa. Esse conceito invade um campo da filosofia que trabalha com inúmeros aspectos interessantes da reflexão atual: pensamento, dúvida, escolha, responsabilidade social, individualismo, coletividade e reciprocidade.
É interessante adentrar a liberdade negativa pela sua antípoda mais significativa: a servidão voluntária. A submissão ao injusto, incoerente, em palavras mais rasas. A servidão voluntária, amplamente discutida no campo da filosofia como um grande empecilho para o desenvolvimento intelectual, moral e físico dos Homens e Mulheres é temporizada pela imposição, ou seja, não há uma regra a ser respeitada, sendo essa uma garantia do funcionamento de todos os órgãos de um corpo, seja ele público ou privado. A servidão voluntária é a expressividade do medo do aprendizado, a tonalidade mais visível da ausência de autoconhecimento e de reconhecimento de autoridade.
Ainda sobre esse tipo de servidão, cabe um exemplo: a voluntariedade de servir ao outro não reside na vontade de aprender com ele, ou estabelecer uma simbiose, uma troca, uma conectividade com o saber do outro. Esse ato voluntário reside na incompletude daquele que serve, no seu ímpeto cego, na sua vontade irremediável de ausentar sua existência na sombra de alguém que ele julga superior. Diante disso, o erro está explícito: um julgamento da superioridade do outro, sendo que deveria ser uma constatação evidente, não um juízo de valor; o ímpeto cego, sendo que servir ao outro é vislumbrar o crescimento do outro, contemplá-lo e compreender que esse crescimento é passível de uma ampliação até aquele que serviu; e por último, a incompletude própria, ou seja, aquele que serve não enxerga-se como um ser singular, que vai adentrar um universo de troca-reciprocidade e absorver conhecimento, trocar experiências e elevar a plenitude do espírito do aprendizado constante. Logo, essa servidão não passa de uma escravidão humanizada, de uma subserviência irracional.
Isto posto, ao adentrar a antítese, o contraponto da servidão voluntária, chega-se ao conceito de liberdade negativa. Esta última definida de forma simplista e complexa: o exercício da liberdade em sua plenitude, sem a intervenção ou garantia externa. De fato, há uma semelhança com uma noção primária de autogestão, de autogoverno. No entanto, o caráter aqui exposto está em ligação direta com um princípio infinitamente maior: a ética. Ética é o comportamento individual, baseado em valores e códigos simbólicos e materiais, espirituais e racionais que norteiam a ação das pessoas. Em suma, a liberdade negativa é a plenitude do exercício ético, da prática dos princípios outrora construídos sem essa plenitude da escolha, da ação imediata, racional, pensada previamente e sem qualquer intervenção.
É claro que é uma liberdade pouco pensada, popularmente, pois ela vai na raiz dos critérios humanos de escolha, na gênese dos pensamentos dos indivíduos, que ligam esses pensamentos a sintonias coletivas e atingem aquilo que a filosofia alemã, por exemplo, chamou de “Espírito”. E esse “espírito”, essa confluência de consciências em conexões elevadas evolui dentro da história de cada um, da história de cada família, de cada bairro, de cada cidade, estado, região, nação. Essa historicidade é justamente o caminho racional para a libertação das amarras da intervenção, da coercitividade (força) externa que obriga o ser a ser Livre. Em tese, atingir a evolução da consciência é atingir um conceito de liberdade que conclua em habilidades autônomas, decisões não maléficas, respeito mútuo, responsabilidade consigo mesmo, com o outro, com a integridade própria, alheia, por meio de um caminho árduo: o aprendizado.
Aprender é estar disposto a limpar o terreno do preconceito, limpar a lente social, moral, ética e espiritual. O aprendizado constante é a única forma de edificar a plenitude do exercício da liberdade, do distanciamento da servidão voluntária, da subserviência irracional e aproximar os seres humanos do mutualismo, da operatividade da cooperação, da coletividade que não se resume em soma das partes, mas sim, resulta em um todo, em um absoluto, que cresce junto, que evolui. E há uma razão fundamental na construção do aprendizado: a disciplina.
De fato, não há como aprender uma atividade, da mais simples à mais complexa, sem que haja disciplina. E há uma interpretação distorcida desse conceito, na atualidade, que envolve a ausência de liberdade, sendo disciplinado aquele que abdicou de sua liberdade. Na realidade, aquele que busca a disciplina estabeleceu uma objetividade da escolha de trabalhar, arduamente, em um processo que resultará em conhecimento. Ou seja, aquele que dispõe de disciplina é, em sua essência, a personificação do fruto da escolha primordial: a liberdade de conhecer, de saber, de estudar, de treinar, de revisar, de descobrir, de descobrir-se, de revisitar, de planejar, de refazer, de renascer.
Portanto, a equação fica explicitamente óbvia: liberdade é disciplina. Ser livre é exercer as ações que foram pensadas, planejadas, repaginadas, que derraparam em erros, no passado, mas que no presente saboreiam a leveza da consciência limpa, da não imposição, da não dominação, do respeito ao outro, do reconhecimento do saber do outro e da importância do saber dele, do reconhecimento do próprio saber e do princípio simplista do ponto de partida de qualquer conhecimento em processo: há ignorância. A ignorância, quando reconhecida em si, como uma representação lógica da vida, é o grande motor para o caminho do conhecimento, que será trilhado, de forma singular, única e infalível, pela disciplina.
O processo é lento e dura a vida toda: a conduta ética é fruto do conhecimento, que por meio da disciplina mostrou a liberdade em sua essência; sendo essa liberdade uma nova mola propulsora para a busca de mais saber, esse saber concretiza mais elementos disciplinares, que resultam em uma ampliação dessa liberdade. Um movimento ininterrupto, infinito, que perpassa o tempo, sem que nós, humanos falhos, possamos perder a chance de desfrutar de sua leveza e sua rigidez, de sua força vital e de sua angústia momentânea, de inúmeros erros e acertos, mas que nada disso seja ausente de enxergar a efemeridade e a transformação constante da vida, que se observada pela disciplina, liberta o espírito, liberta a mente, o corpo e o ar parece ter um aroma de infinitude, algo infelizmente muito distante de nossa breve existência.
Escrito por:
Pedro Pires de Oliveira Neto - 4o.Kyu
Professor de História, Filosofia e Sociologia;
e no caminho da música e do Karate Do.
Yeah
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