domingo, 20 de março de 2022

Filosofando... 5

A morte no “novo normal”: por que negamos?
Closeup, Hanging Scroll, by Myōson 命尊, 1325 AD. Death of Buddha; Treausure of Myōhōji Temple 妙法寺

Os Seres Humanos são uma espécie fundamentalmente singular, única. Desde o princípio de nossa existência, como Homo sapiens, produzimos inovações e técnicas que nos levam a inúmeros campos do desenvolvimento. E não me refiro somente à técnica manual, ao princípio laborioso-físico, braçal, mas também me refiro à capacidade humana de construir pilares abstratos, subjetivos, transcendentes que elevam a intelectualidade, para o bem, como é o caso do incansável debate sobre ética e moral, para o mal, como é o caso da manutenção de alguns campos da moral que não nos cabem mais como seres evoluídos.

Hoje, particularmente, venho para essa coluna do blog do Sanchin Dojo, de forma bem amistosa, e depois de um longo período de reflexões, leituras, releituras, avanços e retrocessos, e creio que isso foi global, para uma conversa. Exatamente! Uma conversa, uma proposta leve, não penosa e nem densa, na linguagem filosófica, porém, ponho a linguagem em um estágio mais fluido porque o tema é estarrecedor, polêmico, praticamente um dos tabus do mundo ocidental: a morte. E tratar sobre morte leva a um vasto repertório reflexivo, mas, quero recortar a conversa: conversar sobre morte no “novo normal”, no período endêmico, quase pós-pandêmico, em um contexto específico e difícil de digerir, pois a famigerada ruptura da vida rondou a humanidade, nos últimos dois anos, com uma proporção assustadora.

A princípio, vou me ater ao fato da nossa espécie ter uma enorme capacidade na arte de naturalizar toda e qualquer manifestação cultural, simbólica e cotidiana que ela criou: naturalizamos a moral, como supracitado acima; naturalizamos a injustiça, convivendo com ela nas ruas, nos índices de violência e na estrutura do sistema de capital; naturalizamos a corrupção, inclusive tangenciando a hipocrisia, pois a naturalização das vias corruptivas não enxerga a corrupção própria, mas, cobra a virtude dos outros. Naturalizamos o mal, banalizamos o mal a ponto de escravizar africanos, subjugar outros povos ao domínio autoritário, devastar territórios, florestas, campos, exterminar judeus, ciganos, inimigos políticos e devastar terras indígenas, nativas, povos nativos.

Porém, não naturalizamos a morte. Há um obstáculo psíquico que evita não só a naturalização, mas, o entendimento das causas, o processo de luto e a superação da morte. E reitero: estamos falando, em terras Brasileiras, de quase 660 mil pessoas mortas, famílias enlutadas, pais, mães, avós, irmãos, irmãs, primos, amigos, amores, paixões, exemplos, amados ou não que foram até um pronto atendimento, com falta de ar, e nunca mais voltaram. Inclusive na própria despedida, respeitando a norma sanitária do processo de enterro, não velaram seus entes, não os viram, apenas ouviram dizer que o corpo foi colocado nu, em um saco preto altamente resistente e levado ao fundo da cova. E todo esse cenário gerou uma catástrofe geral, coletiva, entristecedora e crônica.

Para refletirmos sobre a morte, trago duas propostas e uma intervenção provocativa: a Greco-Romana, a Cristã e uma provocação niilista. Sobre a primeira parte, me atenho à complexidade dos gregos em compreenderem que a preocupação com a morte pode gerar o desejo pela boa vida, pois o berço da civilização ocidental já enxergava, inclusive, o direito de morrer como uma peça chave na libertação do espírito humano, das virtudes dos homens e mulheres. Tanto o filósofo Platão quanto o orador Marco Túlio Cícero tinham essa perspectiva. É o retrato de uma visão inicialmente racional da morte.

Já a visão cristã tornou a existência e a morte uma dinâmica dualista, que se dispunha entre o mundo natural e o sobrenatural. Sacralizou-se a vida, tornou-se a morte um momento autêntico da transposição material do corpo para a eternidade. A visão cristã não naturaliza a morte, mas sim a torna parte de uma esfera transitória para o além-mundo, objetivando a vida eterna, após a morte, como uma finalidade da vida terrena, mundana.

Podemos enxergar duas visões que dispensam a naturalização, pois uma racionaliza a morte e a outra sacraliza a vida em detrimento da morte. Duas fórmulas que se juntaram para formar a cultura ocidental e desembocar em uma tormenta incalculavelmente abismática: recusamos a morte, recusamos o luto, recusamos a aceitação, recusamos a imersão plena na realidade. E agora? Com um número altíssimo de mortes causadas por um extermínio viral não vai se apagar com a recusa, nem tampouco com a negação do fato. Voltar a racionalizar é impossível, não há simbologia mais para tal reflexão; sacralizar a vida se tornou um hábito e o medo da morte é o ponto central da manutenção das ordens religiosas institucionais, que inclusive reafirmam a negação do fato da morte.

Pensemos, pois, no terceiro ponto, a provocação interventiva. E de forma breve, vou direto ao assunto: o novo normal é uma ilusão e a morte é um fato. Seco, porém, um alívio presente! Exatamente: o novo normal não existe. Todos nós estamos saindo dessa pandemia marcados por chagas, medos, revoltas e indagações, o que nos tira completamente da situação pré-pandêmica. O mundo não é a soma de todos os indivíduos, pois o Eu que não perdeu ninguém é diretamente afetado pelo Outro que perdeu um pai, ou um amigo. Há um espírito que perpassa a coletividade e as relações sociais e nos torna uma substância só: humanidade. E esse espírito é a angústia do fim. Portanto, aceitar que há um “novo normal” é um tiro no pé, pois é tudo novo, mas, nada normal.

Ao aceitar que as dinâmicas energéticas, espirituais, sociais, simbólicas, interacionais do universo humano foram deslocadas, sacudidas e repaginadas, chegar na morte como um fato é o passo mais frio e seguro: a morte chega para quem vai; a morte chega para quem fica; o luto é uma necessidade a ser vivido e negar a morte, ou recusar a ruptura de laços e afetos é negar a condição humana de dor coletiva e superação dessa dor. A morte provoca a dor, mas, essa dor é passível de investimentos dos pensamentos mais humanos possíveis, sendo um deles a naturalização, sem banalizar.

Ou seja, naturalizar a morte é compreender que ela é o que une o espírito humano ao condicionamento mais próximo do sentido de superação de dificuldades, pois, morremos todos os dias: morremos em um emprego, em uma dieta, em um esporte, em um relacionamento, em uma paixão, em um amor etc. E essa morte, esse fim, nos ensina a vislumbrar um Eu que adquire um importante ensinamento daquela fase da morte, seja na tristeza de uma demissão, até na perda de um membro. Esse ensinamento cabe no sentido de morte física, também.

Portanto, o luto coletivo, o diálogo entre pares e ímpares, entre os que perderam hoje, ontem e os que ainda perderão amanhã, pode prezar muito pela paisagem natural do caminhar e da paciência da superação, levando à frente aquilo que foi perdido, posto em fim, e que está dentro de quem ficou, de quem permaneceu. E um hábito, uma atividade, um pensamento, uma música não terminada, uma pintura inacabada, um trabalho não finalizado só tomam sentido fértil, no pós-morte de quem não está mais ao nosso lado, quando nós assumimos o risco de aceitar o fim e dar conta do reinício. Este último, diferente, com outras cores, com outras formas, com outros manejos e impressões. Porém, um recomeço repleto de continuidades daqueles que aqui já não estão mais. Naturalizar o fim é perceber que a eternidade não mora na morte, e sim, na vida e que a racionalização promove aceitação cega, muitas vezes abandonando o aprendizado sobre o porvir.



**Texto dedicado a todos que perderam entes queridos.



Escrito por:
Pedro Pires de Oliveira Neto - 2o.Kyu
Professor de História, Filosofia e Sociologia;
e no caminho da música e do Karate Do.



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