QUARENTENA: A FRAGILIZAÇÃO DE NÓS MESMOS, A EMERGÊNCIA DAS LUTAS INDIVIDUAIS E OS DIAGNÓSTICOS REFLEXIVOS
Mural do artista Eduardo Kobra: “Coexistência” - Itu, São Paulo - Foto: Reprodução / Instagram kobrastreetart
Em tempos de isolamento, uma sensação estranha deve passar pela mente de alguns indivíduos: “Nunca me imaginei numa situação como essa!”. Esse pensamento guarda um conjunto imenso e grandioso de reflexões teóricas sobre o comportamento humano e sobre como esse comportamento se revela, diante de um caos, diante de uma possibilidade real de extermínio! Isso, caros leitores: estamos diante de uma possibilidade real de extermínio em massa (que tristemente já está em curso), não pela letalidade de um vírus, mas de sua capacidade de se dissipar a um número infinito de pessoas. Frente a isso, quais as reflexões a serem colocadas como prioritárias? Quais os caminhos a serem adotados, de forma saudável, para que uma luz seja vista mais fortemente do que o desespero de milhões de famílias, que o medo de um inimigo invisível? Aliás, de onde veio esse inimigo?
O isolamento social, a quarentena e suas diversas modalidades têm tomado os debates e as conversas, em geral, nos tempos atuais. Alguns contestam, outros reafirmam, alguns reforçam, outros afrouxam. Porém cabe uma premissa, uma primeira ideia, aqui, nessas linhas simplistas: há um privilégio imenso daqueles que estão em casa! Basta olhar-se e dizer: estou em casa! A casa, o templo de paz, o lar, a morada do sossego e das virtudes mais íntimas de homens, mulheres, famílias inteiras e trabalhadores, empresários e autônomos. Você, ao estar em casa, deve tranquilizar a mente com uma objetividade imediata: a casa é um fim em si mesmo, o lar é o fim de todos os despreparos e medos, pois, aí nesse canto, nesse espaço saboroso e frutífero, estão reinando o descanso e a segurança.
Digo isso com uma aceitação muito profunda, advinda de uma leitura interessante sobre a tranquilidade de aceitação dos desavisos da vida, proposta pela escola grega Estoicismo. Os estoicos olham para as adversidades e os acasos da vida de forma natural, traçando um enfrentamento silencioso e sereno de toda e qualquer travessia que tenha obstáculo. E, convenhamos todos nós, alunos iniciantes, graduados (faixas coloridas), os Shodan, cada Sensei e cada mestre que leia essas breves linhas: o Estoicismo e a visão prioritária atribuída ao sentimento de tranquilidade dialogam diretamente com toda a essência que o Karate Do Goju nos ensina. Cada lição, cada movimento, cada defesa, as bases, as combinações, os fundamentos, as formas expressadas em cada Kata, a espiritualidade do Kumitê e o conteúdo filosófico passado pelos nossos mestres, professores e senseis trazem, em suas condições reais de aplicação e entendimento (mesmo que gradual e muito profundo, didático) essa “tranquilidade estoica”, esse aspecto tão vivo na cultura Oriental, ao mesmo tempo tão complexo na mente do Ocidente, este já vencido pelo movimento rápido de relações virtuais, não reais, não espontâneas.
Ainda sobre a identificação do lar como morada da tranquilidade e a aceitação dessa transição de mundo Pandêmico para mundo Pós-pandemia, jogo luz sobre uma outra face: os trabalhadores que estão desenvolvendo as atividades essenciais para prover energia elétrica, água tratada, remédios, alimentos (do agricultor aos supermercados), atendimentos médicos (agentes de saúde pública) e segurança estão na frente de batalha, não estão em casa. Ou seja, para que alguns permaneçam em casa, outros lutam bravamente com o suor da testa contra esse inimigo poderoso e invisível. Dada essa outra face, há um núcleo importante desse debate, que se resume em um termo que foi banalizado por falsas lideranças religiosas, mas, ele remete a um sentimento nobre e puramente humano, demasiado, humano: a gratidão. Logo, a gratidão para com esses lutadores deve estar à frente de qualquer interesse individual, lucrativo ou objetivista, pois, há vidas em jogo, nessa luta. E esses nobres lutadores, fortes e ao mesmo tempo frágeis, encaram o dia-a-dia da pandemia sem saber se voltarão para seus lares. É o ÁS de espadas de todo o quadro da tranquilidade, tendo a solidariedade e a compaixão como plano de fundo de um sentimento que deve ser real, respeitoso e vívido.
Ao mesmo tempo, uma sonda negativa é introduzida em nossos olhares sociais, pois, nesse exato momento há quem não possa ficar em casa, há quem não tenha uma casa, quem não tenha um lar para desfrutar da segurança de suas paredes e de seus pulmões, há quem more em casas mal planejadas, à beira de esgotos a céu aberto, córregos poluídos e sem acesso a condições básicas de saúde e habitação. Sob essa condição de alguns dos nossos pares (isso! Pares, pois eles são Humanos), esconde-se um sistema velho, desgastado, respirando por aparelhos e que agora está sendo desnudado por uma pandemia: o atual sistema financeiro. O lucro como objetivo totalizante de uma vida, o empreendedorismo desumano e desenfreado, a falsa sensação de felicidade gerada pelo consumo sem medidas, a ausência de compreensão das relações sociais trabalhistas, educacionais e o mais pontual: o descaso total com o sistema Público de Saúde.
O vírus desnudou o elemento mais problemático da atual existência, que se instala sobre o descaso com a saúde pública, com o acesso a essa saúde pública e com uma gana absurda de alguns empresários em lucrar com saúde. Saúde não é um recurso, saúde é um DIREITO. Este, por sua vez, não teve essa essência mantida nos papeis burocráticas que muitas famílias assinaram ao contratar um plano de saúde. Este último, infelizmente, se mostrou deficiente, deficitário e ineficaz contra o COVID-19. O sistema de saúde pública mostrou que, mesmo diante de descasos e cortes de verbas, ele é um bem público necessário, universal, que deve presar pela equidade e pela saúde de todos, não apenas de quem pode pagar. Esse debate está completamente inserido na lógica dos males do nosso atual sistema financeiro, que mercantiliza relações sociais, que mecaniza vidas humanas, que reifica (torna objeto)mentes pensantes, adolescentes, adultos e até mesmo os gestores dos grandes centros empresariais, que despreza o bem-estar social e suas virtudes. Portanto, um sistema que cria uma cultura mercantil, desprovida de razões humanas, de intuições benéficas diante de desafios coletivos e esvaziado de SOLIDARIEDADE.
O nosso atual inimigo veio desse extrato, desse resultado entristecedor das nossas relações com a natureza, desaguando nas relações sociais, pessoais, familiares, sejam elas de parentesco ou não, de vizinhos conhecidos ou nãos, de nativos de um mesmo bairro, de uma mesma cidade, de uma mesma região, de um mesmo estado, de um mesmo país, de um mesmo MUNDO. Retomar a coletividade, a solidariedade e compreender, atender e apreender a luta coletiva pelo bem de todos é emergencial, urgente, necessário. Isto posto, esta luta emergencial vencida, entrará em combate, a humanidade, com um inimigo antigo e ainda maior, que é a causa de todos os males, hoje expostos pela pandemia: o egoísmo, o egocentrismo, a falta de empatia e cultura competitiva maléfica, ou como o filósofo Aristóteles chamava, a “má Eris”. O combate ao Corona Vírus é apenas o início de um momento que pedirá uma revitalização de todos os nossos olhares, de toda a nossa cultura, de todas as nossas relações sociais, políticas e principalmente econômicas.
Que sejamos fortes para enfrentar as dores do mundo; que sejamos serenos para olhar para o mundo; que sejamos humanos para mudar esse mundo!
Escrito por:
Pedro Pires de Oliveira Neto - 4o.Kyu
Professor de História, Filosofia e Sociologia;
e no caminho da música e do Karate Do.
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